ELA

Crônica, desafio de escrita: escrever sobre um objeto afetivo. Exercício proposto pela professora Moema Vilela para a turma de pós-graduação em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataformas – Novo Oeste, MS, 2021.

CRÔNICAS

Maruza Assis

6/1/20213 min read

Ela lambe os fluidos do meu corpo.
Suga com uma violência irracional.
Sai devorando.

Ávida por mudança, transforma tudo que a penetra.
Traga, mói, amassa, molha, bate…

Apaixonei-me desde o início. Não sei ao certo o ano em que ela chegou, sei apenas que tomou a predileção de tudo que a antecedera.
Seu sorriso largo, sua boca grande, seu corpo enorme e barulhento.

Bem que, na maior parte do tempo, ela repousa em silêncio.
Apenas sendo, apenas existindo sem pensar.
Ela não pensa.

Eu respondo pelos seus gatilhos, aciono seus instintos e essência.
Ela vive para mim, vive por mim, e eu a venero, a idolatro, a protejo.

EU A AMO!

Embora saiba que poderei substituí-la, trocá-la a qualquer momento.
Ou ainda permitir que outro a possua.

Ainda que tudo isso ocorra, ela e sua eterna essência permanecerão!
Existirá!
Ainda que em outros corpos, mesmo para outros corpos…
Renovar-se-á!

Entretanto, sempre estará por aqui!

Puxei pela memória…
Eu já a conhecia de ouvir falar.
Já sabia, desde sempre, que ela era ela. Que existia!
Que agia, que fazia pelos outros o que faz por mim.
Que vivia por outros, como vive para mim.

Desde sempre soube disso, desde que me dei por gente.

É que naquela época… Eu não tinha como.
Não tinha como tê-la por perto.
Nada me era permitido fazer, nem à minha família.
Nem a ninguém ao meu redor.

Naquele tempo, para a nossa condição, ela era rara.
Quase inexistente. Uma lenda, quem sabe?

Ela não tem ambições, contudo, jamais se atreveria a dar acesso a quem fosse de minha rua.

Ei!

Num tempo nem tão distante, lembrei-me de uma outra paixão…

Quando ele veio, de cara entreguei-me. Nutrira certo amor para dar.
Ele ofertava-me acesso ao inatingível!
Abria uma, duas, três… várias janelas de possibilidades.
Entregava-me ao mundo.

E eu, que do mundo nada sabia, curvei-me às suas tentações.

De maneira honesta?
Debrucei-me por horas, dias, noites, madrugadas a fio.
Não sabia mais o que era dormir.

Vivia para essa obsessão que me sugava o tempo e retribuía com um mundo inédito.
Um mundo que estava mais para desnutrir e arrebentar minhas noites do que para me entregar algum sustento.

As janelas me levavam para um abismo.
O mundo novo, que de novo não tinha nada, era mais a condensação de um buraco negro a me chupar até o nada.

De fato, essa paixão nada tinha a ver com suas consequências.
Eu, eu mesma, em meu momento oco, nada teria a aproveitar daquilo tudo.
Nada teria a somar com aquela loucura, que era apenas um reflexo de mim mesma.

[E ele teria tanto para me dar… Suas janelas… Ah… suas janelas… Suas possibilidades… Eu seria outra pessoa. Eu não seria eu!
Uma versão bem aproximada das pessoas que hoje me inspiram!

Não nego a minha inveja. Não posso negá-la!
Todavia, não sou cativa disso.

Hoje, o olho grande me impulsiona.
Talvez essa mola até tenha mudado de nome. Permito essa mudança. Já autorizo chamá-la de cobiça].

Este hiato constrangedor de exposição gratuita não é o que importa aqui!

Voltemos às paixões…

Quando comprei meu primeiro computador, não compreendia o que ele e o mundo virtual poderiam me proporcionar.
Mergulhei no vício vazio. Sucumbi…

Os primórdios da internet à minha volta eram uma incógnita.
Vivi o auge de minha inutilidade, fiz jus ao que estava em mim naquele momento.

Uma danação otária, ainda assim, incrível.
Um desperdício incrível e necessário.

Uma rasa paixão que teria de estar sob a pele!
O oposto do que aconteceu com a presença dela.

Ela é ela, e eu sempre irei idolatrar sua existência!

Na solteirice, comprei minha primeira MÁQUINA DE LAVAR ROUPAS.

Assumi a consciência de um passado pesado, escravizado, odioso!
Como era doloroso lavar roupas esfregando à mão.
Ou ainda, com o apoio de um tanquinho elétrico mequetrefe.

A geringonça do aguaceiro pelo quintal encharcava-me dos pés à cabeça.
Mal limpava ou torcia as roupas.

Com Ela, aquele passado haveria de ser apagado, de uma vez por todas!

Que Ela permaneça!
Que Ela seja eterna!

Minha MÁQUINA DE LAVAR ROUPAS
Um amor para a vida inteira!